15 fevereiro 2008

SOFRIMENTO NO QUÊNIA: A FACE DO CONFLITO QUE A GRANDE MÍDIA NÃO MOSTRA

 

QUER MANIFESTAR SUA SOLIDARIEDADE AO POVO QUENIANO
E FAZER ALGO PARA QUE O MUNDO SE MOBILIZE PELA PAZ?

DEPOIS DE LER AS LINHAS ABAIXO, CLIQUE EM POSTAGENS MAIS ANTIGAS PARA VER A POSTAGEM ANTERIOR, ONDE ESTÁ O PASSO A PASSO DE COMO CADA UM PODE PROCEDER PARA AJUDAR NA BUSCA POR UMA SOLUÇÃO AO CONFLITO NO QUÊNIA!

Enquanto os grandes jornais e emissoras de televisão de todo o mundo se ocupam em dar destaque a notícias sobre grandes empresas e interesses econômicos, povos excluídos do avanço social do mundo continuam a morrer sem que se mova uma palha. O conflito gerado por suspeitas de fraudes nas últimas eleições presidenciais do Quênia se tornou uma guerra civil de tamanho inversamente proporcional à atenção que lhe é dada pelos meios de comunicação. Se o leitor, até então, não tinha parado para pensar na situação que atualmente vive o povo queniano, porque achava o fato limitado a uma pequena nota no rodapé do melhor jornal do país, melhor que leia as linhas que seguem. Trata-se de alguns depoimentos de coordenadores do Movimento Humanista do Quênia, que mostram seu sentimento em relação ao caos causado por bandos da mesma terra, divididos para apoiar líderes políticos adversários.

Diário de Charles Juma Onyango, terminado em 02 de janeiro de 2008

Hoje é 27 de dezembro e o povo do Quênia, de todos os níveis sociais levantaram tão cedo quanto umas quatro da manhã para emitirem seu voto, que todos denominaram o voto de mudança. Isso porque, em 2002, votaram por mudanças que, segundo estatísticas, nunca vieram. E, assim, o povo esperou nas filas que, de tão grandes, davam voltas somente para emitir esse voto valioso que, segundo acreditavam, e ainda acreditam alguns, iria mudar seus padrões de vida. As pessoas votaram e voltaram a seus lares ou núcleos sociais para começar a assistir à contagem de votos pela televisão ou escuta-la pelo rádio. No primeiro dia, correu tudo bem, e a contagem favoreceu aquele em quem a gente votou. Ao chegar o segundo dia de contagem, todos começaram a notar certas irregularidades que se mostravam ao diretor da comissão eleitoral do Quênia. No entanto, isso era em vão, pois o velho se limitava a fazer piada sobre as irregularidades observadas. No terceiro dia, a comissão eleitoral começou a expandir o anúncio dos resultados, especialmente os referentes à presidência. Caramba! Está se cozinhando algo no centro de resultados da CEK, em KICC. Estão sendo manipulados os resultados presidenciais. Estão inflando entre 15 mil e 20 mil votos a favor do titular, Sr.Kibai. A gente tem falado sobre o tema com a missão observadora européia, com a estadunidense, incluindo a de commonwealth (aquela baseada nos direitos dos costumes). Ninguém prestou atenção! Ainda é o terceiro dia e toda a nação está ansiosa por saber quem será o próximo presidente. Aquele em quem votaram. Porém, não há notícias ainda. A espera é muito grande e desgraçadamente a forma de expressão é por meio da violência, sendo que o povo começou a destruir as propriedades.

Terrível! Assaltaram um dos maiores supermercados desta zona, em Kisumu. Os saques se instalaram de vez e a destruição violenta, bem como a queima de casas, está encaminhada. Enquanto tudo isso acontece, ninguém quer pensar que isso resultará numa destruição sem garantias, tanto dos seres humanos, como das propriedades.
Geladeiras, televisores, alimentos, tudo foi roubado. Muita gente recebeu tiros e os hospitais estão cheios de feridos. Um dos problemas aqui é que os hospitais têm pouco pessoal para atender às vítimas da violência nesta eleição. Está morrendo um atrás do outro. No quarto dia, a temperatura da violência é alta. A casa do governo pressiona a CEK para que declare Kibaki o vencedor. A oposição, por outro lado, pressiona ainda mais para que sejam recontados os votos para a presidência, à vista dos meios de comunicação e do público! Algo para que a equipe da casa de governo, dirigida pela ministra da justiça e de assuntos constitucionais, não dá ouvidos. Negaram-se, negaram-se reiteradamente. Tem-se ordenado aos meios de comunicação privados que encerrem suas atividades de emissão ao vivo, estocando seus pertences no KICC (centro de Conferências Internacionais do Quênia, por suas siglas em inglês) imediatamente. A temida unidade de Serviço Geral está pronta para que isso se cumpra. A única estação que tem permissão no KICC é a KBC, cujo proprietário é o Estado. Por quê? A CEK deve anunciar agora, imediatamente, que Kibaki venceu o que eles chamam de "uma eleição muito transparente"! Há apenas 20 minutos houve o anúncio da vitória e é feito o juramento em cerimônia na casa do governo. Foi roubada a eleição e devem cuidá-la o mais zelosa e rapidamente possível.

De modo que o outro bando não tenha tempo de se interpor. E é assim como têm sucedido as coisas? Em democracia? Pode ser que sejamos uma democracia, ou não, permita-me pensar um pouco...Que Kibaki venceu a eleição com 30 membros do parlamento contra os 100 de Raila Odinga, é algo que a gente não vai escutar. A conta não faz sentido. Pessoas saem às ruas para protestas e se encontram com a polícia. Dão-lhes tiros a queima roupa, goupeiam-lhes com paus e se instala o caos. Enquanto escrevo esse artigo, escutam-se tiros. Talvez tenham matado um outro, ou dois, ou três, ou quatro e a conta continua. Não sabemos quantos, porém se calcula que umas 170 pessoas morreram, e outras 70 mil tiveram que fugir.

Queimaram-se casas e veículos e nas ruas a loucura continua. As pessoas dizem que foram roubadas nas eleições e juram que não deixarão as coisas assim. Ontem, em Eldoret, mais de 30 pessoas foram queimadas vivas e muitos outros foram mortos nos bairros baixos de Mathare em Nairobi. Oh, meu país! Chorando por ti. Neste momento necessitamos sentarmos juntos e conversar. A única saída é que ambos os bandos guardem seu orgulho e Kibaki declare abertamente uma recontagem de votos. Dessa forma, o povo ficará feliz que o presidente que eles elegeram vença a eleição. Essa é a única segurança de que necessitam. Haverá quem me escute? Essa loucura continuará? Essa parece ser a pergunta que muitos se fazem. Os disparos continuam invadindo o ar. A gente continua chorando. Sairemos dessa, ou a coisa piorará como em Ruanda? Tomara que vocês não tenham lido as manchetes dos diários, que anunciavam em letras de catástrofe: "Trinta e cinco pessoas são queimadas vivas em igreja".

Carta de Sarah Navalayo Osembo escrita em 17 de janeiro de 2008

Deverão saber que a nostalgia se sente tão fresca como as cenouras do campo (eu que inventei, porém soa lindo, não?) Estou bem, como se tivesse ido ao inferno e voltado dele. Quero que retorne um pouco de normalidade e que minha cabeça se abra outra vez. Porém, os políticos desse nosso país decidiram que a lei deverá ser usada somente para beneficiar eles próprios e que se arrebente o resto da gente. Ainda agora, enquanto estou falando com você, chegou-me um texto de um amigo que está na cidade, onde me diz que os policiais entraram em Tao e estão indo aos escritórios falando para que fechem as portas, e o povo vá para casa, pré-anúnciando violência. O engraçado é que antes de 27 de dezembro tudo isso era uma piada. Claro que sabíamos que as possibilidades eram muitas, porém nenhum de nós antecipou essa loucura, que se converteu em obsessão das notícias internacionais.

Eu estava em Eldoret, vindo para Nai, no dia 29. De repente, as pessoas começaram a escapar de dentro da cidade e, por um momento, tudo parecia surreal. Estava com meu irmão, a esposa de um primo, seus dois filhos e meu primo que está no sexto ano. Com clareza, lembro-me. Nunca pensei que eu estaria envolvida em brigas com a polícia. E não havíamos feito nada. Somente estávamos no lugar e no momento errados. Outro rapaz nos viu e nos disse para entrarmos no seu estabelecimento comercial. Por isso, todo esse assunto tribal me fez pensar. Por que decidiu nos ajudar se, evidentemente, não éramos de sua tribo? Isso me diz que é simplesmente política e que, debaixo dela, somos todos seres humanos que precisam um do outro. Para não tornar a história tão longa, o retorno para casa foi um pesadelo. Encontramos seis piquetes no caminho com jovens pedindo aos gritos sangue kikuyu. Rapazes jovens que apenas chegariam aos 16 golpeando o automóvel, jogando paus e pedras, e incendiando os capôs de carros. Nunca fiquei tão assustada em toda a minha vida. Via a morte nesse dia. A pessoa assim se sente inútil, não importa quem seja, de onde venha, o que sabe ou conquistou. Chega o momento e a pessoa se sente tão só e tem que pedir misericórdia a umas crianças. Antes, havia trabalhado para tribunais e, quando traziam os delinqüentes juvenis, estava acostumada a sentir muita pena por eles. O fato de que se faz a cada um prestar contas de seus atos é muito difícil. Mas, vi como estavam nos aterrorizando e desejei que houvesse uma forma de pagarem pelo que estavam fazendo. A esposa do meu primo é uma Meru. Em um piquete (o pior que encontramos) nos pediram que ela descesse do carro porque era uma Kiu. Deus e o motorista puderam parar essa loucura, porque eles tentaram abrir a porta, mas essa se negou a ceder, e o motorista, que era um kalenjin, os convenceu dizendo que a conhecia. Ainda assim, o homem nos deixou no lugar onde apareceu o seguinte piquete. Era muito maior que o outro e o homem, então, disse que não podia se arriscar a seguir adiante.

Tivemos que caminhar por bosques montanhosos com crianças! E nos arredores estavam os caminhões do Serviço Geral que se dirigiam à cidade. Também estavam os nandi, armados com arcos, flechas e lanças, que também iam à cidade. Encontramos uns NYS que nos disseram para partirmos daquele lugar para tão longe quanto fosse possível. Se houve momento em que rezei, creio que ninguém supera esse dia. Agora creio firmemente nos milagres porque demos a volta na esquina e encontramos um homem que ia até nossa cidade. Outra vez, era um Kiuk e decidiu nos ajudar. Ia buscar sua família, porém disse ao motorista que nos levasse primeiro e desceu. Logo ficamos sabendo que foi morto também. Indo até a estação de polícia vimos mulheres e meninos carregando todos os pertences que podiam. Os homens permaneciam atrás para proteger suas propriedades. Justamente quando partíamos, surgiram do bosque os nandis e atacaram a estação de polícia.

Vi com meus próprios olhos, mas não apareceu no noticiário. Disseram-nos que tudo está bem e que a vida vai voltar a normalidade. A quem querem enganar? Essa noite, nossas cidades locais (Turbo e Mautuma) ardiam pelos incêndios e estavam inundadas de gritos. Queimaram, roubaram e assassinaram. Tudo porque estamos lutando pela democracia, porém sem perguntarmos, em primeiro lugar, que tipo de verdadeiros líderes desencadeariam sobre nossas vidas normais esta anarquia e essa falta de justiça. Somos tontos. "O africano é corrupto de onde se o veja", como dizia Chinua Achebe. Levei duas semanas escondida atrás de portas para me convencer de que viajar era seguro. Ainda assim, a autopista de Nakuru a Eldoret era algo inexplicável. Não há palavras que descrevam as carrocerias negras dos carros queimados, as árvores cortadas ao lado do caminho para marcar os piquetes, os campos de milho ainda fumegantes, os centros comerciais esmagados por uma Mabati incendiada, enquanto a gente saqueava o que tivesse sobrado, e os incontáveis quenianos que literalmente enchem cada igreja com medo e súplica em seus olhos. Tudo no mesmo país que era Quênia há poucas semanas atrás. Basta de loucura. Essa nação está cheia de indivíduos que a venderiam ao melhor impostor, indivíduos que prefeririam ver a gente morrer com tanto que não declinassem do poder, indivíduos que não aceitariam a derrota caso não fossem os vencedores. Cheguei à conclusão de que estamos malditos. Vítimas de nossas ações, marionetes da elite. Nos matamos uns aos outros enquanto eles vêem os fatos pela televisão. Temos que olhar pra trás constantemente porque nunca sabemos quando virá a polícia e o pior de todo é que somos julgados por nossos nomes e não por nossa personalidade. E ainda chamamos a esse lugar de lar. Não temos outro lugar aonde ir. Essas coisas me enlouquecem. Escreverei outra vez em que não estiver tão louca. Owize, te amo muito e não se apresse em regressar. Até logo.

Edição e Tradução Conselho 136

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